"Os nossos projectos / de outra mesa maior / mais me custam (...) quando a mesma exígua mesa / agora é uma mesa grande"
A mesa - José Craveirinha, Maria
...
Carrego no trinco, sem me esquecer do jeito sem o qual não abriria o portão grande e abro-o e entro. “O cão já conhece o motor do carro. Vá, faz-lhe lá uma festinha que o animalzinho também merece!”. E sem te ver ainda, neste lado do pátio, não é, de todo, difícil imaginar-te sentado no banco do alpendre, de chapéu de aba larga que te mandaram da América e camisa de flanela verde no pino do Verão. Partes nozes com um martelo na pedra de afiar as facas. Há uma semana atrás tinhas as mãos verdes de descascar favas porque sabes que eu gosto. E, então, penso que agora te entreténs com as nozes, com as favas, com os feijões, para não admitir que inventas nozes para partir, favas e feijões para descascar para estares, assim, sentado à mesa do alpendre, de olhos postos no portão, a esperar, ansioso, que por ele te irrompam netos. Festas feitas no cão, ponho mais entusiasmo do que aquele que sairia naturalmente num “É ‘vô! ‘Tão? ‘Tá tudo bem?”. E os olhos riem-se-te e “Antes de mais nada, ora vai ali ao aido e vê o que lá está!”. E eu vou sem perguntar mais, porque nos habituaste sempre a algo mais do que espantoso na sequência destas frases. Numa dessas vezes, tiraste a mão fechada de dentro de uma tangerineira, que secou há já um tempo, e quando a abriste aos nossos olhos esbugalhados de curiosidade, revelaste um gafanhoto tão grande, mas tão grande que nos custou um susto e um salto atrás. E rias-te. E nós riamo-nos a seguir, já ia longe o gafanhoto.
No fim do carreiro, onde acaba o muro de adobes, andas a estimar uma pequena parreira que, agora, carregada de framboesas, parece saída de um quadro. Confesso que já estava à espera e os olhos riem-se-te, outra vez. Este ano a cerejeira não deu cerejas e estás convencido de que foi por não ter sido neto rapaz a comer as primeiras do ano passado. “Dizem que as árvores ficam aneiras!”, seja lá isso o que for. Ora fico à espera que me mandes comer as framboesas, não vá para o ano não as haver.
Já dizes pela terceira vez que “isso andava atirado para aí e não dava nada e eu então espetei-lhe aí umas canas e olha: está carregadinha!” ao que eu respondo que “está tão linda com as framboesas que dá pena comê-las!”.
Soubesses tu do pouco valor que dou a framboesas e ficarias, certamente, bem triste.
Tens setenta e alguns anos e só agora parece que começo a acrescentar-tos. Sei lá eu porquê. Foste sempre assim e nunca te conhecemos menos velho. Desde que me lembro de ser gente contigo, as tuas mãos nunca foram menos ásperas nem o teu feitio menos previsível. Admirávamo-nos sempre que te víamos arrancar urtigas à mão, desfolhar as espigas de milho em três tempos, desviar as silvas do nosso caminho, dobrar as vergas para os cestos, atar os molhos com ervas que cortavam e amaciar o cabo da enxada com uma cuspidela, entre golpes na terra.
Ensinaste-nos a distinguir sapos de rãs e de relas e pardais de pintassilgos, e deleitavas-te a ver-nos empanturrar os melros caídos dos ninhos com água e papas da farinha dos pitos. E, incrivelmente, resistiam sempre, os pobres bichos.
E chegava a altura das batatas e recrutavas toda a gente. E ai daquele que se pusesse à frente do arado, ou confundisse a vaca com um “Ouo aíííí” ou um “Eixee vaca”. Ninguém ousava já desacatar as tuas ordens e os teus conselhos eram sempre os mais sábios e os mais certeiros. Como ninguém se atrevia a chegar-se às ninhadas de coelhos nas primeiras semanas, ou à caixa do milho onde pousavas as facas por altura da matança do porco, nem mesmo às pipas no celeiro quando mudavas o vinho velho. Couberam-me a mim alguns anos de limpeza da cuba que recebia o vinho novo. Quando deixei de caber na portinhola, e olhando para ela agora parece-me quase impossível algum dia ter lá cabido, encarregaste um neto mais novo. Se soubesses como me doeu a substituição! Gabavas o rigor da minha limpeza e sabias que nenhum canto daquele cubículo ficaria por esfregar com o pedaço de toucinho que me escorregava das mãos pequenas. Ninguém o fazia como eu, ainda o dizes. Acho que puxei a ti o gosto pelas coisas bem feitas. Sabes disso, agora.
Quando o último neto deixou de caber na cuba, na habilidade que te caracteriza, inventaste um sistema complexo de cabos e cordas, focos e esponjas na ponta de uma cana, mas quase inevitavelmente não era a mesma coisa e deixaste de ter vinho para mudar e não mais precisaste de limpar a cuba para o receber. É incrível como na vida os acontecimentos se sucedem e se fazem coincidir. Como rasgos de destino traçados. Sem volta a dar-lhes.
Ponho tanto de alegria como de saudade nesse tempo. Queria ter resistido mais manhãs aos Power Rangers, à Sailor Moon e ao Dragon Ball. Ter-me levantado mais vezes de madrugada e ter apanhado mais com o orvalho ainda frio na cara quando iam apanhar a erva para as vacas. Queria ter sofrido mais com os solavancos da carroça a caminho das terras e ter bebido mais leite ainda quente do úbere. Queria ter sabido que hoje teria saudades de levar o pacote de Planta debaixo do braço quando me mandavas à padeira e consolar-me com o pão quente e a manteiga derretida. E espantar-me com os bezerros a nascer, a periodicidade da postura dos ovos e da chegada das andorinhas para ocuparem os ninhos, nas traves de madeira do alpendre. Queria ter a terra quente entre os dedos dos pés e a cara fendida pelas bandeiras do milho. Queria ter chapinhado mais nos labirintos dos regos da água que puxavas do poço para regar o aido, ter montado mais armadilhas aos pardais e ter roubado mais salsa para não teres desculpa e fazeres bolos de bacalhau para todos. Se eu pudesse voltar atrás subiria à escada encostada à figueira e ficava lá, só para te ver ralhar como dantes por mais tempo e apanhava os damascos e os diospiros verdes. E fugia mais vezes na tua bicicleta para as corridas no beco e esmurrava mais os joelhos à conta disso. Faria mais das asneiras que hoje me deixam saudades, e estenderia a minha meninice eternamente só para não te ver agora, impaciente de testa franzida, à mesa do alpendre, ansioso que pela porta te irrompam netos.
Vou buscar a joeira e vou apanhar as framboesas. Talvez chegue a casa e faça gelado. E hei-de trazer-to, porque o que mais te mima agora é qualquer coisinha doce que te tragamos a par com a Visão da semana. Daqui a dias já vão estar os pêssegos e os damascos maduros e vais telefonar a dar conhecimento disso. E ninguém vai comê-los antes de nós. Vais garanti-lo.
Não foste avô de contar histórias connosco nos joelhos, mas de fazeres connosco a nossa história e hoje, não sei porquê, entre framboesas, ar puro e nostálgico, comovi-me com a precariedade desta vida e com a consciência do pouco tempo que dispenso contigo.
No fim do carreiro, onde acaba o muro de adobes, andas a estimar uma pequena parreira que, agora, carregada de framboesas, parece saída de um quadro. Confesso que já estava à espera e os olhos riem-se-te, outra vez. Este ano a cerejeira não deu cerejas e estás convencido de que foi por não ter sido neto rapaz a comer as primeiras do ano passado. “Dizem que as árvores ficam aneiras!”, seja lá isso o que for. Ora fico à espera que me mandes comer as framboesas, não vá para o ano não as haver.
Já dizes pela terceira vez que “isso andava atirado para aí e não dava nada e eu então espetei-lhe aí umas canas e olha: está carregadinha!” ao que eu respondo que “está tão linda com as framboesas que dá pena comê-las!”.
Soubesses tu do pouco valor que dou a framboesas e ficarias, certamente, bem triste.
Tens setenta e alguns anos e só agora parece que começo a acrescentar-tos. Sei lá eu porquê. Foste sempre assim e nunca te conhecemos menos velho. Desde que me lembro de ser gente contigo, as tuas mãos nunca foram menos ásperas nem o teu feitio menos previsível. Admirávamo-nos sempre que te víamos arrancar urtigas à mão, desfolhar as espigas de milho em três tempos, desviar as silvas do nosso caminho, dobrar as vergas para os cestos, atar os molhos com ervas que cortavam e amaciar o cabo da enxada com uma cuspidela, entre golpes na terra.
Ensinaste-nos a distinguir sapos de rãs e de relas e pardais de pintassilgos, e deleitavas-te a ver-nos empanturrar os melros caídos dos ninhos com água e papas da farinha dos pitos. E, incrivelmente, resistiam sempre, os pobres bichos.
E chegava a altura das batatas e recrutavas toda a gente. E ai daquele que se pusesse à frente do arado, ou confundisse a vaca com um “Ouo aíííí” ou um “Eixee vaca”. Ninguém ousava já desacatar as tuas ordens e os teus conselhos eram sempre os mais sábios e os mais certeiros. Como ninguém se atrevia a chegar-se às ninhadas de coelhos nas primeiras semanas, ou à caixa do milho onde pousavas as facas por altura da matança do porco, nem mesmo às pipas no celeiro quando mudavas o vinho velho. Couberam-me a mim alguns anos de limpeza da cuba que recebia o vinho novo. Quando deixei de caber na portinhola, e olhando para ela agora parece-me quase impossível algum dia ter lá cabido, encarregaste um neto mais novo. Se soubesses como me doeu a substituição! Gabavas o rigor da minha limpeza e sabias que nenhum canto daquele cubículo ficaria por esfregar com o pedaço de toucinho que me escorregava das mãos pequenas. Ninguém o fazia como eu, ainda o dizes. Acho que puxei a ti o gosto pelas coisas bem feitas. Sabes disso, agora.
Quando o último neto deixou de caber na cuba, na habilidade que te caracteriza, inventaste um sistema complexo de cabos e cordas, focos e esponjas na ponta de uma cana, mas quase inevitavelmente não era a mesma coisa e deixaste de ter vinho para mudar e não mais precisaste de limpar a cuba para o receber. É incrível como na vida os acontecimentos se sucedem e se fazem coincidir. Como rasgos de destino traçados. Sem volta a dar-lhes.
Ponho tanto de alegria como de saudade nesse tempo. Queria ter resistido mais manhãs aos Power Rangers, à Sailor Moon e ao Dragon Ball. Ter-me levantado mais vezes de madrugada e ter apanhado mais com o orvalho ainda frio na cara quando iam apanhar a erva para as vacas. Queria ter sofrido mais com os solavancos da carroça a caminho das terras e ter bebido mais leite ainda quente do úbere. Queria ter sabido que hoje teria saudades de levar o pacote de Planta debaixo do braço quando me mandavas à padeira e consolar-me com o pão quente e a manteiga derretida. E espantar-me com os bezerros a nascer, a periodicidade da postura dos ovos e da chegada das andorinhas para ocuparem os ninhos, nas traves de madeira do alpendre. Queria ter a terra quente entre os dedos dos pés e a cara fendida pelas bandeiras do milho. Queria ter chapinhado mais nos labirintos dos regos da água que puxavas do poço para regar o aido, ter montado mais armadilhas aos pardais e ter roubado mais salsa para não teres desculpa e fazeres bolos de bacalhau para todos. Se eu pudesse voltar atrás subiria à escada encostada à figueira e ficava lá, só para te ver ralhar como dantes por mais tempo e apanhava os damascos e os diospiros verdes. E fugia mais vezes na tua bicicleta para as corridas no beco e esmurrava mais os joelhos à conta disso. Faria mais das asneiras que hoje me deixam saudades, e estenderia a minha meninice eternamente só para não te ver agora, impaciente de testa franzida, à mesa do alpendre, ansioso que pela porta te irrompam netos.
Vou buscar a joeira e vou apanhar as framboesas. Talvez chegue a casa e faça gelado. E hei-de trazer-to, porque o que mais te mima agora é qualquer coisinha doce que te tragamos a par com a Visão da semana. Daqui a dias já vão estar os pêssegos e os damascos maduros e vais telefonar a dar conhecimento disso. E ninguém vai comê-los antes de nós. Vais garanti-lo.
Não foste avô de contar histórias connosco nos joelhos, mas de fazeres connosco a nossa história e hoje, não sei porquê, entre framboesas, ar puro e nostálgico, comovi-me com a precariedade desta vida e com a consciência do pouco tempo que dispenso contigo.
Há uma qualquer vontade de te homenagear pelo homem recto que és, pela habilidade que tens, pela perspicácia, pela preocupação, pelo Amor por detrás do rosto rígido que o tempo acabou por embrandecer.
És grande avô!
És grande avô!