domingo, setembro 30, 2007

A propósito.

Elogio do Amor
Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.Hoje em dia aspessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado,viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
Miguel Esteves Cardoso, in Expresso

quarta-feira, setembro 19, 2007

"Isso é o jeito (...) de enganar o tempo."

Quando a hora dobra em triste e tardo toque / E em noite horrenda vejo escoar-se o dia, / Quando vejo esvair-se a violeta, ou que / A prata a preta têmpora assedia; / Quando vejo sem folha o tronco antigo / Que ao rebanho estendia sombra franca / E em feixe atado agora o verde trigo / Seguir o carro, a barba hirsuta e branca; / Sobre tua beleza então questiono / Que há de sofrer do Tempo a dura prova, / Pois as graças do mundo em abandono / Morrem ao ver nascendo a graça nova. / Contra a foice do Tempo é vão combate, / Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.

William Shakespeare

sábado, setembro 15, 2007

[Só por hoje] Procuro o lento cimo da transformação.

Procuro o lento cimo da transformação
Um som intenso. O vento na árvore fechada
A árvore parada que não vem ao meu encontro.
Chamo-a com assobios, convoco os pássaros
E amo a lenta floração dos bandos.
Procuro o cimo de um voo, um planalto
Muito extenso. E amo tanto
A árvore que abre a flor em silêncio.


Daniel Faria

segunda-feira, setembro 10, 2007

(Ainda) Santiago de Compostela

Faltavam os últimos dez quilómetros da nona e última etapa do caminho que, por fim, nos levava a Santiago de Compostela. Depois de tirada a fotografia junto ao marco que indicava estes últimos dez mil e poucos metros, entre outros peregrinos que se foram fazendo amigos ao longo do caminho, tomei consciência da dimensão que tomava aquela contagem decrescente de distância e de emoções.
Era dia 27 de Agosto, uma segunda-feira de sol quente, mas quente como ainda não se tinha feito sentir durante todo o restante caminho.
Já tínhamos caminhado oito dias e meio, o que por esta altura já deixava antever que à semelhança do que acontecia com os últimos quilómetros de cada etapa passada, os últimos quilómetros do derradeiro dia seriam percorridos num misto de ansiedade e de dor - porque dói muito - só aliviado pelas brincadeiras e acrobacias, pelas histórias e pelas canções, pela oração individual ou pela oração a três. E aos dez quilómetros da nona etapa, sem dar por mim, trauteava aquela música do André Sardet que diz “Para me encontrar / Procurei o meu lugar / E no fim estou mais perto de mim. / E na esperança de alcançar / Uma forma de mudar / Estou mais perto de mim.”. E estava. Como nunca antes estivera.
Fazer, finalmente, o Caminho de Santiago de Compostela, revelou-se a prova viva de que aliar os sonhos à persistência só pode resultar em coração cheio.
A 19 de Agosto, ainda o dia tinha apenas seis horas e catorze minutos, já eu, o João e o Ricardo, três jovens de Ílhavo, entravamos no suburbano que nos levaria à cidade do Porto, em cuja Sé iniciaríamos a peregrinação a que cada um se tinha proposto. Carimbadas as credenciais de peregrinos ainda intactas, já se afigurava diante nós a primeira das muitas setas amarelas que iriam nortear os nove dias seguintes.
Há já dois anos que idealizávamos, sonhávamos, avançávamos, recuávamos no “Camiño” e, finalmente, chegara a hora. À saída as palavras amigas e encorajadoras do Pe João, “Que Deus vos acompanhe e que o caminho vos transforme. Força.”, foram o mote.
Qualquer guia ou mapa, apesar de essenciais, qualquer testemunho ou tentativa de explicação daquilo que é fazer o Caminho de Santiago, reduzem à milésima parte o verdadeiro sentido do Camiño, porque como já dizia o poeta, “Caminhante não há caminho / O caminho é feito a andar.”. Neste sentido, a somar às dezenas de caminhos já trilhados e documentados, há os milhões de caminhos já percorridos, já que cada um que caminha, caminha por si o seu próprio caminho.
De outros testemunhos que procurei ir conhecendo, uma vez que na véspera de partirmos a sede de informação era insaciável, percebi em muitos a comparação inevitável entre o caminho e a própria Vida: as dificuldades do dia-a-dia, as tristezas, as desilusões, as metas, as ambições, feitas metáforas nas subidas intermináveis, no sol tórrido, no peso da mochila, na chuva, na trovoada, na alegria de finalmente chegarmos ao albergue, no banho quente e no banho frio, no colchão e no chão duro, na certeza de que na manhã seguinte teríamos pés para mais trinta quilómetros, no superar da etapa mais longa, na presença de amigos e familiares no início, a meio e no fim. Porém, fazer, efectivamente, o caminho dá também a outra perspectiva, aquela que se torna intraduzível no testemunho posterior: não só a Vida se revela um caminho mais ou menos penoso, como todo o caminho se apresenta repleto de Vida. E é assim que o Caminho de Santiago vale, sobretudo, pela presença viva de Deus numa listagem enorme de momentos, situações e pormenores que me custa arriscar enumera-los: há a Natureza e a Criação no estado mais puro, há a história dos lugares onde cada um faz história, há a experiência de grupo e a do Eu singular e único. Há a entreajuda, há a alegria, os sorrisos, as lágrimas e a oração fervorosa que brotam, espontaneamente, do sofrimento dos últimos quilómetros de cada dia. Há estranhos que se fazem amigos e histórias de Vida que extasiam. Há amigos e notas de gaitas de foles à chegada. Há cores e cheiros inebriantes. Há acolhimento, há discernimento, há a transmissão do segredo de um Caminho que afinal não termina em Santiago de Compostela, mas que lá começa, há já saudade das coisas que têm necessariamente que acabar, das pessoas que partem para voltar e daquelas que cruzaram o nosso caminho e que nunca mais veremos.
Há, afinal, a possibilidade imensa de nos maravilharmos, a cada instante e a cada passo, com a presença de Deus, em coisa e em cada Um.
Bon Camiño!