segunda-feira, setembro 10, 2007

(Ainda) Santiago de Compostela

Faltavam os últimos dez quilómetros da nona e última etapa do caminho que, por fim, nos levava a Santiago de Compostela. Depois de tirada a fotografia junto ao marco que indicava estes últimos dez mil e poucos metros, entre outros peregrinos que se foram fazendo amigos ao longo do caminho, tomei consciência da dimensão que tomava aquela contagem decrescente de distância e de emoções.
Era dia 27 de Agosto, uma segunda-feira de sol quente, mas quente como ainda não se tinha feito sentir durante todo o restante caminho.
Já tínhamos caminhado oito dias e meio, o que por esta altura já deixava antever que à semelhança do que acontecia com os últimos quilómetros de cada etapa passada, os últimos quilómetros do derradeiro dia seriam percorridos num misto de ansiedade e de dor - porque dói muito - só aliviado pelas brincadeiras e acrobacias, pelas histórias e pelas canções, pela oração individual ou pela oração a três. E aos dez quilómetros da nona etapa, sem dar por mim, trauteava aquela música do André Sardet que diz “Para me encontrar / Procurei o meu lugar / E no fim estou mais perto de mim. / E na esperança de alcançar / Uma forma de mudar / Estou mais perto de mim.”. E estava. Como nunca antes estivera.
Fazer, finalmente, o Caminho de Santiago de Compostela, revelou-se a prova viva de que aliar os sonhos à persistência só pode resultar em coração cheio.
A 19 de Agosto, ainda o dia tinha apenas seis horas e catorze minutos, já eu, o João e o Ricardo, três jovens de Ílhavo, entravamos no suburbano que nos levaria à cidade do Porto, em cuja Sé iniciaríamos a peregrinação a que cada um se tinha proposto. Carimbadas as credenciais de peregrinos ainda intactas, já se afigurava diante nós a primeira das muitas setas amarelas que iriam nortear os nove dias seguintes.
Há já dois anos que idealizávamos, sonhávamos, avançávamos, recuávamos no “Camiño” e, finalmente, chegara a hora. À saída as palavras amigas e encorajadoras do Pe João, “Que Deus vos acompanhe e que o caminho vos transforme. Força.”, foram o mote.
Qualquer guia ou mapa, apesar de essenciais, qualquer testemunho ou tentativa de explicação daquilo que é fazer o Caminho de Santiago, reduzem à milésima parte o verdadeiro sentido do Camiño, porque como já dizia o poeta, “Caminhante não há caminho / O caminho é feito a andar.”. Neste sentido, a somar às dezenas de caminhos já trilhados e documentados, há os milhões de caminhos já percorridos, já que cada um que caminha, caminha por si o seu próprio caminho.
De outros testemunhos que procurei ir conhecendo, uma vez que na véspera de partirmos a sede de informação era insaciável, percebi em muitos a comparação inevitável entre o caminho e a própria Vida: as dificuldades do dia-a-dia, as tristezas, as desilusões, as metas, as ambições, feitas metáforas nas subidas intermináveis, no sol tórrido, no peso da mochila, na chuva, na trovoada, na alegria de finalmente chegarmos ao albergue, no banho quente e no banho frio, no colchão e no chão duro, na certeza de que na manhã seguinte teríamos pés para mais trinta quilómetros, no superar da etapa mais longa, na presença de amigos e familiares no início, a meio e no fim. Porém, fazer, efectivamente, o caminho dá também a outra perspectiva, aquela que se torna intraduzível no testemunho posterior: não só a Vida se revela um caminho mais ou menos penoso, como todo o caminho se apresenta repleto de Vida. E é assim que o Caminho de Santiago vale, sobretudo, pela presença viva de Deus numa listagem enorme de momentos, situações e pormenores que me custa arriscar enumera-los: há a Natureza e a Criação no estado mais puro, há a história dos lugares onde cada um faz história, há a experiência de grupo e a do Eu singular e único. Há a entreajuda, há a alegria, os sorrisos, as lágrimas e a oração fervorosa que brotam, espontaneamente, do sofrimento dos últimos quilómetros de cada dia. Há estranhos que se fazem amigos e histórias de Vida que extasiam. Há amigos e notas de gaitas de foles à chegada. Há cores e cheiros inebriantes. Há acolhimento, há discernimento, há a transmissão do segredo de um Caminho que afinal não termina em Santiago de Compostela, mas que lá começa, há já saudade das coisas que têm necessariamente que acabar, das pessoas que partem para voltar e daquelas que cruzaram o nosso caminho e que nunca mais veremos.
Há, afinal, a possibilidade imensa de nos maravilharmos, a cada instante e a cada passo, com a presença de Deus, em coisa e em cada Um.
Bon Camiño!

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