Em Lisboa há pombos de todos os cinzentos que se conhecem: cinzento claro, cinzento escuro, cinzento cinzento, cinzento arroxeado, cinzento esverdeado, entre outros cinzentos. Aninham-se aos meus pés com o papo já cheio das migalhas que ainda caem das mesas. Quem os vê, agora, não imagina como labirintavam ainda há pouco entre os pares de pés dos passinhos agitados das pessoas que por aqui passam. Se reduzir a escala as pessoas são os pombos e os pombos são as migalhas que caem das mesas e não há pombos para essas migalhas e as migalhas crescem à medida que caem e são, por fim, estorvos aos pés agitados que se sucedem neste canto da estação. Santa Apolónia. Pombos. Muitos pombos que subitamente se achegam (como diz a senhora que se sentou ao meu lado e que faz cair do guardanapo migalhas aos pombos). Aquele fica sem nada, acrescenta. E a migalha do outro é motivo de zaragata entre pombos que esvoaçam baixo e levantam penas e pó e migalhas no ar. Alguém devia dizer a estes pombos que o lugar dos pombos é nos jardins e que as estações de comboio são lugares das pessoas. E, a responderem, alguém deveria pensar trocar migalhas no chão da estação por lugares cativos nos jardins e os jardins seriam das pessoas e os lugares das pessoas seriam dos pombos. Eu cá diria: Senhor Pombo, consta-me que não se importaria – para não lhe dar hipótese - de arrulhar coisas bonitas à sua amada no chão de Santa Apolónia em troca de fartas migalhas. E, uma vez assentida a troca, alguém deveria propor aos pombos que cedessem as asas em troca do entendimento, que agora me davam mais jeito as asas sem rumos do que os rumos sem asas. Tenho para mim que os pombos, fartos da sua condição de bibelots nas prateleiras das fachadas dos edifícios, aprovariam de bom grado a troca.
E teríamos a exclusividade dos bancos dos jardins. E dadas asas aos corações dos Homens teríamos exclusividade nos ramos das árvores por cima dos bancos dos jardins e não haveria mais ponte nem haveria mais estrada nem mais lua nem mais estrelas nem mais das coisas que unem o que só não está encostado mas está rente. Inspiro com o diâmetro todo do meu peito. Fecho os olhos e passa um filme na parte de dentro das minhas pálpebras. No filme - o tal filme - há uma caixa que abro e não tem fundo mas tem, até cima, dias dentro, como eu tenho, até cima, sol por dentro. E não sei já se a caixa é caixa ou se a caixa é peito e se o conteúdo da caixa são dias ou desejos ou dias muito desejados. Mas a caixa abre-se aos meus olhos que estão por dentro dos olhos fechados e a esses olhos abertos depõem-se os portões de todos os jardins de Lisboa e alinham-se, de cada lado, todos os dias em todos os bancos, junto a todas as fontes, sob todas as fases da lua, como se se alistassem prenúncios e possibilidades de felicidade infindas.
Quero um dia para plantar uma árvore num jardim por precisar de um dia para aconchegar-lhe as raízes no solo. Quero um dia para imprimir essa Primavera nas palmas das mãos e um dia para regar essa árvore nesse jardim. Um outro dia para ver brotar as primeiras folhas e ainda outro para esperar pelos frutos que nascem depois de caírem as flores que vêm depois das folhas. Um dia para ver amadurecerem-se os frutos. Outro ainda para ver amarelarem-se as folhas e um outro para ver essas mesmas folhas cair. Um dia para caminhar sobre essas folhas e imprimir o Outono nas palmas dos meus pés chatos. Um dia para ver encarquilhar-se-lhe a casca e um outro para ver surgirem-lhe os líquenes. Quero estações a sucederem-se ao ritmo a que crescem as árvores e árvores que crescem ao ritmo a que vão chegando as estações. Quero dias a seguirem-se ao ritmo a que a lua cresce e mingua no céu e abraços compassados com a queda das folhas secas na caixa que não tem (ao) fundo. E nesse fundo quero um piano.
Quero dias, (de) Sol. Quero todos os dias.