AMOR
Ouve. Há dias em que questiono os gestos mais simples. Respirar, o que é? Nesses dias, as metáforas fazem mais sentido do que beber um copo de água. O que é um copo de água? Um copo é feito de vidro e eu não sei de onde vem o vidro, transparente e frágil, duro, excepto perante o chão, excepto perante uma pedra. Alguém lhe deu a forma de copo, esse conhecimento foi ensinado através de gerações, há estranheza em tudo isso: nesse alguém desconhecido, nessa distância. Depois, há a água, essa substância que chove, oposta ao fogo, que atravessa organismos provisórios. Há o próprio acto de beber, que é uma necessidade fisiológica. Em dias, como hoje, tudo isso é absurdo, falta-lhe sentido, e as metáforas têm muito mais lógica, crescem do ar, ateiam-se num mundo invisível. Se procuro razões, acredito que somos mais importantes do que a nossa pele. Somos mais importantes do que os nossos pulmões.
Os nossos cabelos ficam mortos na almofada, há vassouras a varrê-los no soalho. Para nomear aquilo que comunica entre nós, precisamos de metáforas. Sei que entendes o meu inverno, vejo-o no reflexo dos teus olhos e, no entanto, não são os teus olhos que vejo. Falo dos teus olhos apenas porque esta é a linguagem da nossa condição, da nossa espécie, mas aquilo que temos para dizer e nos une é muito maior e mais importante do que a nossa condição ou do que a nossa espécie.
Por exemplo, damos a mãos. O que importa realmente não são as nossas mãos, feitas de ossos que aprendemos nas aulas de biologia, mas sim uma âncora de oceano. Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.
Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.
Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti, existe também à nossa volta quando estamos juntos. E agora estamos sempre juntos. O meu rosto e o teu rosto, fotografados imperfeitamente, são moldados pelas noites metafóricas e pelas manhãs metafóricas. Talvez outras pessoas chamem entendimento a essa certeza, mas eu e tu não sabemos se existem outras pessoas no mundo. Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos. Agora, somos uma única rocha, uma única montanha, somos uma gota que cai eternamente do céu, somos um fruto, somos uma casa, um mundo completo. Existem guerras dentro do nosso corpo, existem séculos e dinastias, existe toda uma história que pode ser contada sob múltiplas perspectivas, analisada e narrada em volumes de bibliotecas infinitas.
Existem expedições arqueológicas dentro do nosso corpo, procuram e encontram restos de civilizações antigas, pirâmides de faraós, cidades inteiras cobertas pela lava de vulcões extintos. Existem aviões que levantam voo e aterram nos aeroportos interiores do nosso corpo, populações que emigram, êxodos de multidões famintas. E existem momentos despercebidos, uma criança que nasce, um velho que morre. Dentro de nós, existe tudo aquilo que existe em simultâneo em todas as partes.
Questiono os gestos mais simples, escrever este texto, tentar dizer aquilo que foge às palavras e que, no entanto, precisa delas para existir com a forma de palavras. Mas eu questiono, pergunto-me, será que são necessárias as palavras? Eu sei que entendes o que não sei dizer. Repito: eu sei que entendes o que não sei dizer. Essa certeza é feita de vento. Eu e tu somos esse vento. Não apenas um pedaço do vento dentro do vento, somos o vento todo.
Escuta,
ouve.
Amor.
Amor.
6 comentários:
Finalmente.
=)
F.
Estou parvo.
Deixas te me a chorar..nem sie bem porquê...mas..que palavras....
Lindo.
Amei! E dos sublinhados!
João Alves
aha... olhem (de certeza que não vos passou pela cabeça mas a ter-vos passado) não fui eu que escrevi isto mas o José Luis Peixoto.
=)
*
tenho que actulizar o estaminé porque vós, assíduos leitores, mereceis!
Beijinhos!
Muito bom:)**
Ahhhhhhhhhh, José Luis Peixoto.... Cemitério de pianos é um livro excelente.... o mais engraçado disto tudo que neste fim de semana comprei, "livro" a sua mais recente obra... linda a maneira de escrever desta personalidade...
Continua por aí...
Bjitos e até... sábado?!
nc
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