6 de Maio de 2007 , 22:30
É, muitas vezes, difícil começar a escrever sobre coisas muito diferentes. Sobre as coisas que nos fazem felizes, sobre as coisas que não nos fazem tão felizes, sobre as coisas que nos magoam, sobre as coisas que nos restituem a alegria, sobre as coisas do passado, sobre as coisas do presente e sobre as coisas que são planos de futuro.
E enquanto me decido por onde começar, já que é tão difícil começar a escrever sobre coisas tão diferentes, começa a ser tão complicado começar a escrever sobre coisas tão diferentes como são as coisas que mexem connosco, que não seria de admirar que começasse por escrever que, realmente, é, muitas vezes, difícil começar a escrever sobre coisas muito diferentes.
Não tenho dúvidas de que se o peito tivesse um chão que me sustivesse a mim, a meia dúzia de papéis e a um lápis amarelo e preto pouco afiado HB2, seria aí que eu me sentaria encostada ao coração, para escrever no extremo do sentimento, onde estou agora.
(Tenho um zumbido nos ouvidos. Deve ter sido do sol na cabeça. Contento-me com a vulgaridade do diagnóstico. Pois bem…)
Não tenho grande memória. Nunca tive. Há muitas coisas de que não me lembro e tenho pena. Sei que daqui a um tempo vão restar poucas lembranças e que muitas delas só me serão devolvidas pelas imagens, conversas e palavras de outros. Mas não me esquecerei nunca de que tudo aquilo de que não me lembro foi vivido no limiar da plenitude. E isso contenta-me. Muito. Muito!
Fátima Jovem 2007 foi mais uma grande experiência e uma grande experiência em grande. Fomos muitos. Fomos 70. Fomos 700. Fomos milhares.
Começamos por caminhar umas horas. E que difícil que foi o caminho durante a primeira hora. Havia ainda muita energia nas passadas e isso valeu mais naquele terreno incerto e de terra vermelha. Trouxemos na memória do olfacto as lufadas de alfazema, de tomilho e de rosmaninho com que a natureza nos pontuou o caminho. A paisagem era bonita, mas ficou perfeita quando completada por um serpenteado colorido de jovens que começavam uma caminhada, em mês de Maria, rumo à casa de Maria que os acolhe há já muitos anos, sempre por esta altura.
Houve tempo e espaço para muitas coisas. E que fácil que era deixarmo-nos simplesmente conquistar pela natureza que nos envolvia, pelas pessoas que nos rodeavam, pelas notas e palavras misturadas com risos e sorrisos, canções, brincadeiras e muita alegria.
Fizemos opções, como nos exige a Vida a cada instante. Boas, menos boas, cooperantes ou não. Mas todo o caminho que é caminho acaba por nos pôr as dificuldades e as barreiras características que, somadas aquelas que, sem necessidade, lhe acrescentamos, acabam por nos dificultar o percurso. Quem dera que se tenham arrecadado as pedras e que se construam castelos. Um dia.
Já no santuário houve tempo e espaço para nos encontrarmos com Maria e lhe abrirmos o coração. Escolhemos o sítio para nós ideal, deixámo-nos ficar enquanto quisemos.
Fátima tem isto de nos levar até lá sem qualquer esforço. Sem qualquer esforço, vamos por ser assim. Sem sacrifício algum, apesar das plantas dos pés doridas, das bolhas, das pernas cansadas, do frio ou do calor, da fome e da sede, do cansaço de cada um. Mas Fátima leva-nos e nós vamos. Cativa-nos e nós ficamos. Envia-nos e nós voltamos com vontade de regressar. Fátima com jovens chega ao âmago de cada um e chegou ao meu. Ainda me arrepia lembrar-me da meia hora de espera, antes de entrarmos no auditório Paulo VI. Aquele tecto é tão baixo e nós saltámos tão alto. Aquele espaço é tão pequeno e nós gritamos com tanta força. Em cada ano aquela meia hora e o tempo que dispensamos no auditório são diferentes. Em cada ano os muitos que lá estamos, a força com que cantamos, a energia com que saltamos, renovam em mim a esperança nos jovens que somos, mas também a revolta de, sendo tantos e transbordado tantas formas diferentes de energia que conjugadas são quase transcendentes, ainda não nos termos empenhado verdadeiramente na mudança deste mundo.
À noite, a recitação do rosário, como Maria pediu um dia a três crianças, estreitou laços invisíveis e até imperceptíveis entre nós. A oração em grupo faz-nos chegar mais longe com as nossas motivações e desvanece em nós as preocupações, as dúvidas, as nossas dificuldades de cristãos na sociedade de agora, porque somos muitos, porque nos partilhamos e estamos reunidos em nome dEle e em comunhão com o Mundo.
O auditório Paulo VI voltou a acolher a vigília que este ano se centrou no ecumenismo e na cruz ecuménica. E foi bonito. Pôs-nos à prova a vontade com que deixamos Deus estar e ficar entre nós, com que nós vamos querendo estar com Ele.
Eleger um momento marcante deste encontro Fátima Jovem não me é possível. Não procuro a excelência de um momento para lembrar para sempre. Não faço isso com nada. Gosto de ser assim. Gosto de saber maravilhar-me, sem esforço, com todas as coisas e de reconhecer nelas a mão de Deus. Nas mais grandiosas e nas mais insignificantes, nas mais vistosas e nas mais imperceptíveis.
Atentar nos sorrisos ainda tímidos, à partida, de quem vai pela primeira vez, no brilho dos olhos rasos de expectativa de quem já sabe ao que vai, no nervosismo de responsabilidade de quem aposta em nós, nos cheiros do caminho, nas pedras que rolam por baixo das botas e quase me fazem escorregar, nas formas em que, em grupo nos dispomos, ao fazer o caminho, nos rebuçados que partilhaste comigo, na pressão do abraço que me deste, na gargalhada com que me encheste os ouvidos, nas nuvens que ameaçavam chuva, nas encruzilhadas onde já tínhamos discutido caminho, nas palavras que troco com quem ainda não conheço, naquelas que troco com quem já conheço, nas conversas sem sentido, nas piadas sem piada, nas pulseiras vermelhas, nas fitas verdes, nos comboios e “combóiadas”, na luz da minha vela, na procissão de luzes de milhares de velas e da nova perspectiva deste ano, na inclinação amorosa do rosto de Maria, na oração pela mãe que tenho, no silêncio, no cansaço, na tão desejada água quente do banho, no colchão que temos este ano, no repouso, na oração às refeições, nas palavras daquela irmã de sorriso tímido mas tão pleno, no tempo que vão demorar a deixar-te dormir hoje, no teu aniversário, na broa e na chouriça que trouxeste para partilhar connosco, na tua irresponsabilidade que me faz sentir que há mais por onde posso ajudar, na certeza de que tu vais para casa mais preenchida e com vontade de voltar, na certeza de que vocês serão “nossos meninos” um dia, na expectativa de vos mostrarmos como Ele nos basta, na letra das canções, em ti que eu mal conhecia, no teu sorriso transbordante de felicidade e nas histórias de missão que contaste, no diminutivo “Sarinha” com que ainda me tratas, nas ararutas com doce, queijo e fiambre, nas ararutas “com nada”, nos ursinhos vermelhos de comer e nos trajectos esquisitos que percorrem até chegarem ao estômago, na flor que me deste sem me conheceres, nas palavras que não disse, no choro que contive, na desilusão que me causaste, na conversa que ainda não tivemos, nos Magnun que comi e que eram uma doidice, na reflexão na amizade que temos, na certeza de que continuará, na confiança que depositaste em mim, nas parvoíces que disseste e fizeste, na homilia que me fizeste chegar ao coração, nas palavras que usaste, nas questões que levantaste e nos desafios que nos deixaste, na palavra “envio” que repetiste, na perspectiva de “cruz” que nos mostraste, nos milhares de lenços brancos, na palavra “adeus” e no fechar os olhos para sentir sem ver, na cor que predominava, na fotografia de grupo, nos saltinhos tontos e no “um, dois, três”, no fazer o saco e no aperto de nostalgia que aparece sempre nessa altura, na chamada cuidadosa por cada um de nós à entrada do autocarro, na pouca queda que tenho para as cordas e para as palhetas, no caminho de regresso, no lugar que escolheste, nas risadas estridentes, nos teus vários sonos interrompidos, nos voos das canetas de uma ponta à outra do autocarro, nas dedicatórias dos lenços brancos, na chegada à nossa terra e ao nosso ringue, no abraço colectivo no jardim e no “Voa bem mais alto com o “quero tudo abraçado e a cantar para acabar” que nunca falha, na simpatia da boleia para casa, na coincidência de quem parece estar lá de propósito à espera para que o teu carro possa arrancar, na entrada em casa, na docilidade da Laila que me espera, nos saltos dela e nas lambidelas fieis, no barulho das fitas da porta da cozinha que te faz olhar para trás, no beijo em ti mãe porque é o teu dia, nas poucas palavras que disse porque vimos sempre assim, no jantar que esperou que eu chegasse, no turbilhão de sentimentos que tive na cabeça enquanto fazia o saco para voltar a Lisboa, na cama onde estou agora, no zumbido que tenho nos ouvidos e que afinal se deve dever à quantidade infindável de coisas que trouxe e que ainda não organizei nas gavetas da memória, na oração da noite, na certeza de que o sono será tranquilo e de que me vai restabelecer, no dar graças pela possibilidade de ir, ser e estar inteira em tudo o que vivi.
Obrigada a Ti e a cada um.
“Toma a tua Cruz e segue-Me vive sem medo de te dares (…) Pára para veres tudo aquilo que és, é no teu amor que Ele está.”