sexta-feira, outubro 03, 2008

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Preciso, às vezes, de uma certa luz que há a uma certa hora de certos dias - também não a todas as alturas do ano - num determinado sítio.
É por agora, penso, que o milagre acontece e as coisas tomam cada qual o seu tom pastel e alguém pinta o quadro mais sublime com as cores que julgo serem as minhas. As que os meus olhos mais apanham. As mais profundas.
É por agora, penso, imediatamente antes das maçãs do rosto me ficarem frias e o nariz me começar a pingar.
É por agora, penso, quando as gaivotas tomam a praia em dias como o de hoje, quando há nuvens brancas e baixas e sol. Um sol grande e a pôr-se. Um sol tão grande que parece perto.
É por agora, penso, por esta hora, que o milagre se dá.
De tantas vezes ver adivinho. Estou longe e adivinho o milagre a dar-se.
E se não tenho tempo de arrefecer as maçãs do rosto encardidas do sol da tarde, se já não fico até o nariz me pingar, passo a ponte com esta tela encaixilhada no espelho retrovisor e contento-me.
São dezanove horas e doze minutos e o sol não deve ainda sequer roçar a cordilheira de nuvens que estão pousadas no horizonte.
Dou-lhe quatro minutos. Dou quatro minutos ao sol e este pousa, enfim.
Sei que há no tempo que estas coisas demoram a paciência amorosa dos artistas.
É agora que as nuvens ficam da cor que as palmas das mãos têm quando, dadas, se aquecem. Uma cor que não puxa nem mais ao beije, nem mais ao roxo, nem tão pouco ao rosa e enquanto penso nisto destilam-se as cores de todas as coisas à minha volta.
E há gaivotas que se apossam da areia ao fundo e à minha esquerda, no quadro. São as que contemplam comigo o milagre. Há as que fazem o milagre, também. Vão e vêm, vagarosas, com a pouca ondulação que presumo que faça agora.
Penso que deve restar-me pouco mais do que meio sol e é agora do céu a cor das mãos que se estão a dar e as nuvens são da cor dos meus pés molhados e ao frio que daqui a pouco me vai arrefecer as maçãs do rosto e fazer-me pingar do nariz. E neles revelam-se, agora, todas as pedras com que no tempo se faz a areia. Brilhantes, pequenas, dão outra graça às minhas unhas e há um alaranjado, que se apura com o sol a pôr-se, nos meus ombros, nos meus pulsos, nos meus joelhos, nos meus tornozelos. Talento do artista consumado no ângulo da luz.
E por haver artista julgo que volta e meia me passa para as mãos as paletes e espera que me desembarace. São as cores do meu tempo. Pastéis, esbatidas.
Descuido-me e também já eu sou tela nas suas mãos e com o sol já escondido por trás das nuvens o alaranjado, antes nas minhas formas, é agora contorno brilhante das nuvens cinzentas que amuralham o sol. Tão brilhante que diria que algo acontece ao sol por esta altura, atrás das nuvens. A última pincelada. Agrada-me.
Sou eu, agora, das cores pastel que desceram do quadro e só assim faço mesmo meu o milagre do fim da tarde a uma certa hora de certos dias, também não a todas as alturas do ano, num determinado sítio.
Todos os sentidos me tocam as cores e aos olhos do artista sou do tom do fermento que leveda, do cheiro da água que se perde no ar do fim da tarde, do sabor do mar que seca ao ar na minha pele, dos sons crepitosos da espuma, das conversas indecifráveis entre as gaivotas, das ondas que rebentam aos meus pés, da cor das nuvens, ao frio.
Fica a faltar-me o tacto ao toque das mãos que, dadas, se aquecem e tomam a cor que têm as nuvens não roçadas, por enquanto, por um sol que é tão grande a ponto de parecer pôr-se perto.

1 comentário:

Anónimo disse...

esta pintura em forma de texto... faz-me lembrar as idas ao templo, falar com o alto no meio do balanço que as gaivotas sentem...

Há gente que da areia, também na perspectiva que eu vejo, meio dentro, meio fora de água...

bj e boa escrita!

pedro