terça-feira, março 02, 2010

Do que trago comigo.

Em nenhuma outra noite como nesta eu teria entendido tão bem o significado de um salmo, tão funda e enraizada estava a minha vontade no concreto da minha vida. Tantas graças tinha eu a dar a Deus.
Tínhamos chegado a Lwena ia já alta a noite depois de um dia e meio a bater estradas muito más que me tinham já deixado mazelas no corpo. As primeiras horas de caminho foram feitas emersa no espanto pela riqueza das imagens mais bonitas e menos bonitas que são constantes e na aventura expectante de um balanço ou manobra mais arrojados do Toyota em que seguíamos. A primeira metade do caminho é deslumbramento. A segunda não. O mau estado dos caminhos moeu-me o corpo e eram umas 23h30 do segundo dia quando chegávamos a Lwena comigo num estado aproximado ao transe a que um sofrimento mantido pode levar.
Nessa noite o gerador desligou-se mais tarde para que quando chegássemos fossemos acolhidos por todos os que também não tinham ido para a cama com o gerador porque nós chegávamos. E estavam praticamente todos lá, ainda que na altura eu não lhes conhecesse nem o nome nem as caras por só uma me ser familiar nessa noite. A todos os outros fui chegando com o tempo.
Nesta primeira noite, e apesar do corpo moído mas de alma tranquila por ter chegado onde haveria de pertencer, foi à volta da mesa que trocámos as primeiras palavras, respostas típicas a perguntas típicas: os “comos” e os “porquês” de também eu estar ali. Outras respostas daria numa das últimas noites em que as conversas já à luz da vela, muito depois de desligado o gerador, se tinham à volta da mesa da cozinha da casa dos voluntários do VIS.
Nesta primeira noite, porque os outros estavam todos ocupados, foi-me destinado um dos dois quartos do pequeno anexo ao fundo do quintal da casa. Já à luz fraca de uma vela fraca dei comigo num sitio onde fazia frio durante a noite, em que entre a porta e o chão havia quatro dedos de altura. Nas primeiras noites a mala que tinha levado tapava essa grande fresta assim que fechava a porta do quarto. Ao fim de umas noites tranquilizava-me mais que a fresta se mantivesse livre não fosse alguma criatura de Deus entrar-me no quarto e não conseguindo sair virar-se contra mim. Ora todas as noites seguintes foram passadas numa cordial convivência com as criaturas mais prováveis ao fundo de um quintal em Lwena.
Como com a lua pela janela entreaberta. Como com o movimentos e as palavras trocadas e as gargalhadas na rua entre os que saíam assim que o sol começava a raiar ainda antes das seis da manhã.
Mas estava nos salmos e em como nesta noite entendi o verdadeiro sentido destas palavras. Já deitada no colchão com três dedos de altura sobre um estrado de madeira o corpo fatigado queixava-se e os salmos eram “Oração de Confiança”, “Súplica e Acção de Graças” como nunca antes.
Agora, é pela noite dentro, quando já não há movimento ou rumor algum aqui por casa, que volto às fotografias de tudo e de todos aqueles que de alguma forma não ficaram suspensos nesse Agosto de 2009. Volto para ouvir as mães cantarem músicas que não sei do que falam mas há-de ser, com certeza, da esperança e da fé em cada dia novo. E fortaleço-me. Torno aos colos embrulhados em padrões de cores vivas para neles deitar a cabeça em busca dos gestos ternos, consolo e ânimo, que não faltam na mão destas mulheres. Volto como me inclino para o afago do Pai hoje num poema. Volto sem segurar sempre as lágrimas que não sei se são mais de desânimo, de saudade, de tristeza ou de alegria imensas.
Ainda lá, e à medida que se aproximava a altura de voltar, para regressar a Luanda foi preciso tentar algumas vezes conseguir o malfadado voo militar. Este acabou por surgir numa manhã, imprevisivelmente, e teve mesmo que ser aproveitado não fosse não haver outro tão cedo.
No fim acabei por não me despedir de quase ninguém e isso que faz-me crer que hei-de voltar a Lwena, um dia, por ter ficado tanto por fazer e dizer mas tanto mais por Ser.
Hoje, saudades.


vem procurar-nos


Deus que escutas o mundo,

e o barulho dos nossos corpos contra o molhe,

vem procurar-nos ao fundo da nossa noite,

lá onde os fantasmas nos devoram

e as belas palavras nos desmultiplicam

vem procurar-nos, Deus

ao fundo da nossa profissão de descontentamento

e de exportadores de deuses


não nos entregues aos nossos próprios discursos;

dá-nos antes um corpo de escuta e de desejo

para que te reconheçamos ao largo das nossas vidas.

livra-nos, Senhor,do medo de sermos encontrados diante de ti

como uma chaga aberta ou fonte

e concede-nos que te digamos

com toda a água e todo o sal da nossa vida

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei tanto , mas tanto da tua partilha!
OBRIGADA CORAÇÃO!
Ainda estou lá, é uma viagem sem regresso...porque onde quer que eu esteja,o que vejo, sinto e experimento, aquela terra e gente estão em cada sensação e em cada experimentar!
Ti gostu e ti digo...TAMU JUNTA CÁ E LÁ! ;)

Anónimo disse...

Li e reli-te e revi e revisitei um mês um pouco mais longe, no interior e profundo Moçambique. Obrigado também pelas memórias que são a vida a tornar-se mais viva.

Beijo.

João Alves