sexta-feira, outubro 27, 2006

Ao espelho

Hoje vais dormir triste.
Triste, muito triste. E frustrada, como nunca.
Se houve alturas em que te julgaste um pequeno cinzel na mão do escultor, hoje tomas consciência de que a pedra não podia ser mais dura e mais baça.
Olhas à tua volta, e no teu mundo a sério, os homens perderam a capacidade de se surpreenderem com a beleza infindável das pequenas coisas.
Fazem-se grandes viagens, alcançam-se outros mundos, mas raramente se detêm, por minutos, a contemplar o Tejo do “jardim das oliveiras”, no CCB. E dizem numa pressa “É gira a vista, não é?”. Gira. A vista é gira. Mas a vista é linda. A vista é linda porque é o Tejo, porque é água que desagua num mar imenso e porque para ser linda basta ser partilhada com amigos numa tarde solarenga.
A amizade é linda, não é gira.
Num olhar mais demorado, num ângulo de 360º, dás pela indiferença dos outros. São poucos os que se deixam interpelar pelas necessidades dos demais. Não vêem mais para além daquele “tenha a bondade de me auxiliar” descompassado ou ritmado do pedinte do metro em hora de ponta, quando o pedinte do metro toca, mesmo em playback, umas péssimas versões “panpipes” das valsas dos grandes e célebres da história da música. E, aí, reconheces mais uma maravilha do mundo.
Também tu estás diferente. A cidade tirou-te a espontaneidade de comoção que te caracterizava. Já não choras com tantas lágrimas e tanto ranho. Já não te ris com todos os músculos. O coração retrai-se a cada estímulo e vais dando pela vida a passar.
Na cidade não há raízes. A Vida resume-se a um acaso do tempo que te presenteia com um intervalo no qual tentas fazer mais e mais e melhor e melhor, mas nunca na quantidade certa e da melhor forma.
Já poucos reconhecem, verdadeiramente, o Dom da Vida dada, oferecida, como um presente incompleto que se constrói juntando as peças, e se aproveita entretanto, e se finaliza com o sentimento de dever cumprido.
Já poucos há que a defendem como o maior tesouro e são menos ainda os que viram o mundo do avesso para a tornar melhor, a sua e a dos outros.
Ainda não saíste da tua história d’”O Principezinho” e vais insistindo que “o essencial é invisível aos olhos. Só se vê bem com o coração”. Talvez na tua história te defendas dos que insistem em contar-te a história do mundo que estimula a sensibilidade táctil e que resulta na libertação de neurotransmissores nas fendas sinápticas, também eles desejosos de alcançar a membrana pós-sináptica, na ânsia de obterem resposta.
No teu livro a vida é espaço de acção responsável a favor do teu mundo. Não compreendes que haja vidas a passar ao lado desse sentido de co-responsabilidade.
Não compreendes que alguém tenha o desplante de não se sentir grato pelo Dom gratuito que lhe foi concedido.
Nas tuas páginas de ténues cores e ilustrações simples, as rosas que aparecem no teu caminho são contempladas demoradamente.
Entendeste que querendo o que queres tens tudo quanto queres.
Queres o simples e o belo, mesmo quando ambos se encontram soterrados a muitos metros de profundidade e as tuas mãos parecem pequenas demais para escavar tanto terreno. E dás por ti a descobrir a beleza do acto de escavar quando também ele é acompanhado de outros.
Tens companhia nesse trajecto que espera longo e repleto de riquezas, óbvias ou escondidas. E se a meta fosse num já a seguir, dirias que tiveste o mais longo e belo caminho, porque medes a qualidade e não a quantidade.
Talvez não mudes o mundo, nem tão pouco as cores e os pincéis com que os outros o pintam. Talvez outros pintores não saibam estimar a brancura das suas telas intactas. Talvez não te tenha sido concedido o dom da palavra e da argumentação. Nem sempre te consegues defender, tu sabes. Nem sempre te consegues fazer ouvir. Nunca vacilas no que respeita a ti, mas raramente consegues por em palavras o que sentes.
Gostas de pensar que é assim por tudo isso ser imensurável e só ser compreensível quando experimentado. A verdade é que ninguém sabe o quanto fervilhas por dentro. Talvez a grande tarefa esteja em levá-los a experimentar outro Amor maior.
Mas se um dia que seja, um minuto que seja, despertares noutros a ânsia da busca pelos tesouros da Vida, então considera valorosos os momentos em que resististe a desinstalares-te da tua história de príncipes e de rosas, de reis e de raposas, de mundos e de estrelas e de cobras que comem elefantes, porque nesse instante realizarás parte da tua parte na construção deste mundo.


Aos meus incrédulos Amigos que perderam a capacidade de contemplar a beleza mais difícil e mais escondida das mais pequenas e mais simples coisas. Que o tempo se encarregue de vos despertar para a verdadeira Vida. A do entusiasmo a cada novo dia, a cada instante. Porque mais do que eu, são vocês que têm de “acordar para a Vida!”.
Com carinho,
Sara

2 comentários:

Anónimo disse...

Que desabafo...
Às vezes penso que vivo num Mundo do qual não consigo perceber a linguagem que é utilizada... nem me dou ao trabalho de aderir a esta forma descompassada de vida... tão anti-natural... como é que é possivel nos mantermos indiferentes a um por do sol, ao desabrochar de uma flor pela manhã, ao canto de um passaro, ao abraço de um amigo... afinal de contas não é ai que está a VIDA, O AMOR... DEUS...
Não desistas... e lembra-te...
"Grita comigo, que é possivel avançar contra a corrente..."

paulo disse...

Sim...Também eu tive Lisboa e a experiência de uma GRAnde cidade na minha vida...E o coração endurece de facto!!!
encontrava o equilibrio de Lisboa nas poucas vezes que ficava de fim de semana...Descanso, sossego, uma cidade mais humana, mais cheia do espirito dos pequenos bairros onde a proximidade faz do vizinho familia...
ENTUSIASMO!!! - etimologicamente. Ter Deus dentro de nós/Estar cheio de Deus...E tudo irá melhor!!!